30 de ago. de 2019
Do que é feita Priscila Brito
Reconhecer-se em uma narrativa traz conforto. É como se a gente encontrasse pronta a nossa mitologia pessoal. Por muitos anos, me agarrei a uma dessas histórias que a cultura pop fabrica para as massas, mas que ao mesmo tempo parecem ser uma representação pessoal sob medida.
Era "Quase Famosos", o filme que conta a história de William Miller, o adolescente que entrevistava bandas de rock e escrevia para a Rolling Stone - um filme quase autobiográfico, já que o diretor, Cameron Crowe, viveu um momento semelhante em sua vida.
William era o que eu tinha escolhido ser quando crescesse. Tudo bem que era menino, vivia nos anos 1970 e suas únicas referências possíveis eram o classic rock. Mas era o que mais se aproximava do que eu projetava pra mim e assim me apeguei afetivamente ao filme.
Corta para 2018, quase duas décadas depois. Eu estava pesquisando alguns livros para comprar e ler nas minhas férias de fim/início de ano quando me deparei com um romance da inglesa Caitlin Moran, que eu já conhecia de "Como Ser Mulher". O livro da vez era "Do que é feita uma garota". A sinopse: "Um romance de formação hilário, com trilha sonora de Velvet Underground, My Bloody Valentine e as melhores bandas indie rock nas paradas dos anos 1990". Não precisei de nada mais que isso para comprar o livro.
A minha expectativa era tão somente ler um romance agradável que teria a música como pano de fundo e pra mim isso já seria o bastante para valer o livro. Mas ali, enfim, eu me vi num espelho. Ali estava uma versão muito mais próxima do que eu posso adotar como minha mitologia pessoal.
A garota do título é Johanna Morrigan, uma adolescente dos anos 1990 fissurada em música de uma família pobre que se vira como pode para ouvir os discos das bandas de que gosta mas não tem dinheiro para comprá-los e em determinado momento vira jornalista musical da NME. Encontrei bastante de mim na Johanna, não só nesse resumo espremido do que é a personagem como também nas citações a Kurt Cobain, Smashing Pumpkins, Manic Street Preachers; nos crushes com os caras de bandas; nas descobertas, prazeres, perrengues e inquietações que só uma menina cis tem durante a adolescência.
Ler o livro a essa altura da vida foi como me reencontrar com a Priscila que eu fui um dia e com parte da Priscila que eu achava que eu iria ser. Porque um dia eu fui essa adolescente que decidiu ser jornalista de música para passar o resto da vida em uma redação de jornal ou revista escrevendo textos sobre bandas e resenhando shows. De fato, eu consegui ser exatamente isso por um tempo, mas fui além, graças às linhas tortíssimas e imprevisíveis da vida.
Nem nos meus sonhos mais fantasiosos eu imaginaria que eu acabaria co-criando um veículo próprio - o Festivalando, um blog de viagem para festivais de música, do zero, e que ele seria uma fonte de renda, uma referência e me permitiria fazer tudo o que eu sempre quis e o que eu não imaginava que poderia fazer para além dos limites físicos de uma fria redação de jornal. Eu faço esse tudo e algo mais pelo mundo afora. O meu eu do passado, que só viajava para o interior de Minas, só entraria em um avião aos 24 anos de idade e só sairia do Brasil aos 27, chegaria para o meu eu de hoje e diria espantadíssima: foi DESSE JEITO que você conseguiu?
Desde a leitura do livro, fiquei com a inquietação de voltar a escrever aqui. Este blog foi por algum tempo o espaço que eu usei para canalizar meu ímpeto de escrever sobre música com mais liberdade, sem as pré-definições que precisava (e ainda preciso) cumprir ao fazer isso profissionalmente. Meu playground, meu confessionário, meu momento "dance like nobody's watching". Só a minha vontade de escrever sobre o tema, que me acompanha já há mais de duas décadas, e nada mais.
No meio do ano, fiz uma viagem que me aproximou ainda mais disso tudo. Vi o The Cure ao vivo no Rock Werchter, na Bélgica; fui pra Manchester e perambulei pelos mesmos lugares onde um dia perambularam os Smiths e o Joy Division. Tão longe, tão perto, experimentei novos momentos de reconexão com aquela Priscila que um dia eu fui e que se transformou na Priscila que hoje está aqui.
A não ser pela falta de tempo, não deu mais pra segurar e cá estou eu quebrando um hiato longuíssimo para voltar a movimentar este blog. Não sei se vou conseguir, mas vou tentar. Preciso tentar, pois se eu sou o que sou hoje e faço o que faço hoje, é porque eu gosto de música e o que eu escrevo aqui é a expressão mais direta desse ímpeto.
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